domingo, 8 de abril de 2012

COMO TUDO COMEÇOU

COMO TUDO COMEÇOU

João Eduardo Ornelas

É manha de uma segunda-feira, mês de maio (?) no ano de 1970 e o menino de 5 anos acorda sobressaltado com um barulho forte de motor. Em sua imaginação fértil de criança pensa logo: será que é um avião? Ele bem sabia que a pequena cidade para onde se mudara recentemente não descia avião, mas bem que no espaço que tinha na rua que eles chamavam de Largo, cabia um avião, e dos grandes.

Entre assustado e curioso cutucou o irmão mais velho ainda dormindo na cama ao lado e falou:
--Acorda, sô, escuta que barulhão. Parece até avião.
--Deixa de ser besta que avião não vem aqui não, sô.

Sentindo a apreensão reinante no quarto dos meninos a mãe foi até lá para acalmá-los e ao mesmo tempo satisfazer a curiosidade dos pequenos:
--Não precisa assustar. É uma patrola que a prefeitura arranjou e tá trabalhando lá perto do grupo. Dizem que vão fazer um jardim. Quem me falou foi o tal do Lalau Bahia quando veio trazer o leite (aliás, o leite de hoje tá mais aguado que o de ontem, tá até azulado, uma vergonha). Precisa  mesmo melhorar esse lugar, imagine um capa-bode que não tem nem praça, nunca vi isso. Onde que seu pai tava com a cabeça, enfiar a gente nesse fim de mundo. Espero que seja por pouco tempo.

A família havia se mudado recentemente para a pequena cidade de São Francisco do Glória. O pai, José Alexandre, era marceneiro. Juquita, apelido pelo qual era conhecido, era um profissional com larga experiência no ramo de fabricação de móveis. Mudara-se pra lá a fim de montar seu primeiro negócio próprio e juntamente com um sócio, o Otávio, amigo de longa data estavam fundando a Fábrica de Móveis São Francisco. A esposa Zilda, abnegada dona de casa reclamava quase que por hábito, mas no fundo estava esperançosa e orgulhosa da atitude do marido. A cidade apesar das limitações era acolhedora e os vizinhos hospitaleiros. A mulher estava com gravidez adiantada, e as vizinhas vendo sua situação aproximaram-se solidárias.Os meninos foram bem recebidos e logo fizeram amizade, principalmente o mais velho, Alexandre, mais extrovertido e atirado. O mais novo, João Eduardo, por ser tímido tinha mais dificuldade para se enturmar mas já tinha dois amigos: o Rubinho filho da dona Marta, uma bondosa viúva, e o Pascele, filho mais novo daquela outra vizinha, a Totônia Moreira que tem um bando de filhos levados. Além dessas duas vizinhas, tinha a tal de Gracinha que estava com neném de colo, um menino de nome Ricardo e que se prontificara a ajudar no que fosse preciso. Tinha também a Dona Fia, muito engraçada e extrovertida, mãe do Zé Pedrosa, aquele rapazinho que havia começado a trabalhar na marcenaria. D. Zilda não precisava se preocupar que não faltaria apoio.

Grande parte da apreensão da nova moradora devia-se aos comentários que ouvira sobre a cidade  quando morava na vizinha Miradouro. São Francisco era tido como lugar violento e perigoso, onde se matava por qualquer motivo. Terra de índios, diziam. Além do mais estava com saudades da filha mais velha, Valéria, que ficara com a avó e a tia em Ervália, por insistência dessas sob o pretexto de não prejudicar os estudos da menina. A mãe bem sabia que não era nada disso, era apego das duas com a menina, e apesar de saber que a filha estava em boas mãos, sentia saudades.

A família foi instalada provisoriamente na casa da esquina , bem em frente à prefeitura. O imóvel foi dividido em duas moradas por uma parede de tábuas feita pelos próprios inquilinos. A família do Otávio ocupava a parte de trás, tendo direito ao quintal  e à cozinha da casa. Ao sócio Juquita e sua família coube a parte da frente, menos arejada, cozinha improvisada e não tinha lugar nem para secar roupa. O banheiro estava no meio da casa e era de uso comum, tendo duas portas, uma para cada moradia.

No fundo Zilda estava até satisfeita, pois o que tinha de melhor no lugarejo estava por perto. A farmácia do Sr. Sebastião Dias estava logo ali. O grupo escolar também (breve os meninos iriam precisar) e a igreja, muito bonita por sinal estava a poucos metros. Gostou muito do Padre Inácio que tinha uma fala fácil, agradável e fazia um belo sermão. Muito diferente do estressado Padre Joaquim lá de Ervália que vivia passando pitos nos fieis, e de outros padres de origem estrangeira e fala enrolada a que estava acostumada. Achava  agradável ser acordada todos os dias com a voz do Padre Inácio no alto falante da Matriz lendo um trecho bíblico e fazendo a oração da manha. Na verdade, até aquele momento a cidade e seus moradores tinham demonstrado ser o contrário do que ouvira em Miradouro. “Tomara que seja só boato”, pensou.

Em breve a praça seria construída e os meninos teriam mais um lugar para brincar. A mãe não gostava que eles fossem para o morro da caixa d”água descer chiando na casca de coqueiro pelo pasto abaixo. Apesar de ser perto, achava a brincadeira  perigosa e não era de seu agrado que os meninos sumissem de sua vista por muito tempo. Enfim, com a graça de Deus tudo haveria de se ajeitar.

Mas voltando ao barulho do motor, os meninos levantaram-se, tomaram café com leite e pão sem manteiga (a mãe juntava nata para fazer manteiga caseira, mas com o leite azul do Lalau Bahia, tava difícil) e foram assistir à patrola trabalhar. Seguiram sorrateiros, meio apreensivos e foram chegando a cara na quina do grupo, e maravilhados viram uma enorme máquina amarela, cheia de rodas soltando fumaça para cima e cortando a terra. Outros meninos já estavam lá e se juntaram a eles. Praticamente toda a cidade assistia ao trabalho: o prefeito, os funcionários da prefeitura, o senhor dono da padaria, e até o padre assistia lá do adro. Os meninos ficaram ali o tempo todo, agachados encostados na parede do grupo, perdendo até a noção das horas sendo preciso que a mãe fosse até lá chamar para o almoço.

Mais alguns dias, a patrola foi embora e uma cerca foi levantada cercando o local onde seria construída a praça. Por um longo período vários homens ali trabalharam, e os meninos acompanhavam tudo conversando com os operários, às vezes levando água para matar-lhes a sede. Entre eles Alexandre e João, filhos do casal Zilda e Juquita eram presença certa. Mal sabiam que presenciavam um momento histórico da pequena  cidade, ocasião em que desaparecia o Largo da Matriz, e surgia a Praça São Francisco de Assis. Em junho de 1970 nascia Luciana, a caçula e única franciscana natural. Nasceu em casa mesmo, como os outros filhos, com auxílio de parteira, nesse caso a dona Maria Jerônimo. E assim estava completa a família que sem saber ligava pra sempre seu destino ao da pequenina cidade que escolheram para morar, a principio temporariamente, mas que foram ficando e ficando.

Os meninos cresciam ali, soltos, pés no chão, quase sempre em companhia dos filhos da Totônia Moreira. Faziam todo tipo de estrepolias: brincavam de pique-salva, boleba, tampinha, pegavam rabada nas charretes e carros de boi, etc. Mexiam com a Rita Pamparra, a Marinha Carrinha, Seu Candinho e outras figuras excêntricas do lugar. Outro que era alvo de pilhérias era o Gil do Sebastião Dias. A meninada o chamava de Jiló Margoso e ele furioso corria atrás. Quando tava quase pegando outro dizia: Jiló Margoso. E ele mudava seu alvo de perseguição e a tática se repetia. O Gil acabava ficando exausto sem conseguir pegar ninguém.

Mas nem sempre os meninos tinham coragem de acompanhar os amigos nas artes mais arriscadas. Sabiam do rigor do pai e temiam as conseqüências. Seu Juquita era bem diferente do Seu Joel, pai dos amigos que podiam fazer o diabo a quatro que não tinha o menor problema. Os meninos faziam o absurdo de entrar no boeiro, rastejar pela manilha até o quintal do Seu Olegário para roubar frutas de seu quintal. Conta-se que um dia o Jole, muito grande ficou entalado na manilha com a camisa cheia de laranjas e passou um aperto daqueles. Uma vez eles cortaram o rabo da égua do Inhozinho Guedes que ficava estacionada na cerca do grupo, dizendo que era para a canarinha fazer ninho. O dono do animal ficou muito brabo quis briga e somente se acalmou depois que o Seu Joel pagou o estrago a dinheiro. Outra que os moleques faziam sempre era tirar a cadeira quando as visitas iam sentar para vê-las se esborracharem no chão. Era demais.

E assim eles foram crescendo, estudaram no o grupo, foram para o colégio, tornaram-se adultos, os meninos trabalharam de marceneiro com o pai e se casaram ali mesmo. A cidade entranhou nos poros, na corrente sanguínea dos Tavares Ornelas, e esses por sua vez também impregnaram algo de si mesmos na cidade.

Tanto que um deles, João Eduardo, metido a escrever passou a narrar os fatos, a historia e os causos de São Chico, e deu de publicar numa tal de Internet, acalentando o desejo de um dia, quem sabe, colocar tudo num livro homenageando assim a terra que os adotaram e foi por eles adotada.

E foi assim que tudo começou.








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